ORTEGA Y GASSET, José. Goya. Obras Completas. Tomo VII. Madrid: Alianza, 1993

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As anotações que José Ortega y Gasset (1883-1955) fez sobre o pintor Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) foram postumamente publicadas pela Revista de Occidente, em Madri do ano de 1958. No entanto, os organizadores as publicaram novamente nas Obras Completas de Ortega, no volume VII, em 1993. Essas anotações organizadas sob o título de Goya são, na verdade, dois textos de Ortega intitulados: Preludio a un Goya e Sobre la Leyenda de Goya. O objetivo dos textos é investigar o pintor Goya e estabelecer a relação de sua vida e seu tempo com suas obras. Desse modo, Ortega sente necessidade em apresentar a seus leitores qual é a atitude dos espanhóis no fim do séc. XVII a partir da análise da arte goyesca.

Por Danilo Santos Dornas**

Saturno devorando a sus hijos. Obra de Goya

Quem foi Goya? Francisco José de Goya y Lucientes foi um pintor que decidiu ir a Roma e retornou à Madri em 1766. Começou então a pintura de “cartões” para a Real Fábrica de Tapeçarias. Neste mesmo tempo começou a pintar retratos e cenas de jogos e diversões dos madrilenos. Suas telas, em sua maioria, representam a coletividade. Em 1792 começou a pintar “Caprichos”. Em 1801, inicia a fase obscura com desenhos que tratam a Espanha dilacerada como conseqüências da fome, da miséria e da morte. Os retratos, nesta fase, passam a ser apenas esboços. Este momento da vida do pintor é a mais explorada pelos seus estudiosos devido à mudança brusca e violenta do conceito amável da existência que suas pinturas apresentaram anteriormente.

Para Ortega, “Goya é um monstro, precisamente o monstro dos monstros e o mais decidido monstro de seus monstros” (Goya. O. C. Tomo VII. p. 507). E os admiradores de Goya são pessoas que se deixam conduzir pela confusão dos historiadores da arte que atribuem à monstruosidade de Goya, uma genialidade. Ortega completa que tratar um pintor como grandioso, a ponto de compará-lo como um modelo mundial, significa negligenciar uma série de outras criações, sobretudo na pintura, que a Espanha neste mesmo período produziu. Para uma discussão ética, Ortega nos parece se referir ao cuidado em construir modelos de vida e partir destes, passar a identificar toda tradição cultural reduzida à vida de um personagem com discursos científicos. No entanto, é preciso esclarecer o que foi a cultura espanhola do século XVII para confrontá-la com os dramas vividos por Goya. Nesta tentativa, diz Ortega, a história se restringe sempre à biografia de algum personagem. E na maioria das vezes, as biografias são construídas por pessoas que idolatram o personagem a ser retratado, exatamente por tomá-lo como modelo. Daí a confusão que se estabelece da incapacidade em identificar o que um determinado sujeito tem de bruto e o que ele apresenta de gênio.

Ortega ao deparar-se pela primeira vez com as pinturas de Goya confessa que se sentiu extasiado com o alto grau de otimismo e benevolência que elas representavam. Mas, ao deparar-se com a fase obscura de Goya e perceber os traços que ele compôs sentiu que “se há alguém que reclama ser compreendido, ser explicado e não só ser visto, é Goya” (p. 513). A dúvida é explicar por que um homem que pinta uma obra chamada “Caprichos” passa, então, a pintar “Quadros Negros”. Para os historiadores da arte, isso não aparece de forma clara. Ortega explica que a obscuridade dos historiadores da arte é influenciada pelo método hipotético que constrói as ciências empíricas. E a ciência quando é construída de forma empírica simplesmente, torna-se uma fantasia. A fantasia é limitada por ser uma máscara que envolve e escurece algo que possa ser explorado e melhor compreendido. A crítica à ciência empírica de Ortega se esclarece melhor na obra Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset (2002), de José Mauricio de Carvalho (nasc. 1957), na seguinte passagem:

As teorias científicas possuem leis e princípios logicamente organizados com o intuito de interpretar a realidade. Esse fato, esclarece Ortega, não autoriza, contudo, a entender que é a coisa mesma que estaria presente no conhecimento, sem sofrer qualquer tipo de mudança. Não há dado sensível que chegue ao sujeito sem alteração (CARVALHO, 2000, p.288).

Nesta tentativa, de Ortega, nos parece seu propósito em abordar a autenticidade do pintor, para enfim compreender se há alguma relação entre a biografia da personagem Goya e o tempo em que viveu. Essa discussão sobre a vida autêntica é uma das categorias que Ortega utiliza para sua discussão ética. Sobre a vida autêntica, Ortega compreende que é uma luta aos ensejos da vida das massas. Viver com autenticidade é viver com qualidade e é o que diferencia a vida humana das demais vidas. As massas não são autênticas por se apresentarem cegas à própria vida, vivendo como máquinas.

Ortega verifica que as pinceladas de Goya nos “Quadros Negros” não são espontâneas, pois são governadas por uma intenção. Para Ortega, a intenção de Goya ao esboçar sua fase obscura era apresentar a seu público seus problemas pessoais. Então, os quadros quando são expressos pelas emoções não podem ser identificados com os problemas do seu tempo. Ao admirar um quadro, o espectador deve levar em conta a vida do pintor e não as técnicas que ele utiliza. Ao contrário, para se estabelecer a relação do tempo com a obra de um pintor deve-se conhecer todas as obras que este pintor produziu e o que ele não produziu. No caso de Goya, os temas pintados são variados o que caracteriza que foram escolhidos. Ele se sentia capaz de tudo, de utilizar todas as técnicas possíveis para pintar. Assim, se sentiu como um criador superior. Acontece que em fins do século XVII os pintores perdem a atenção dos homens. Goya não possui qualquer afinidade com os temas de seu tempo ao longo de sua vida. Quando pinta “Caprichos”, por exemplo, significa que houve um esforço próprio de repetir as técnicas que aprendeu em sua estadia em Roma e não conseguiu reproduzir em obras posteriores. Quando a Europa começa a introduzir o romantismo, Goya se sente confuso, obscuro e isolado.

Neste período, acontece um fenômeno que Ortega julga interessante na arte espanhola. A divisão entre a arte culta e a arte vulgar desaparece no teatro e nas touradas. Goya que sempre manteve contato com a aristocracia espanhola não conseguiu assimilar essa união entre as culturas promovida pelo entusiasmo do povo espanhol nas touradas e a genialidade dos atores e atrizes do teatro. A popularidade destas duas tradições uniu o povo espanhol e a aristocracia porque ambos gozaram de extrema felicidade. Já na metade do séc. XVIII a Espanha ficou caracterizada por tudo que era vivido com fogosa intensidade, um entusiasmo total. Essa característica determinada pelo entusiasmo do povo espanhol foi o que faltou no início do século XX gerando os problemas morais que Ortega analisa em suas obras España invertebrada (2000) e A Rebelião das massas (1987). Nestas obras, o autor indica que, o início do século XX foi marcado por uma série de crises devido à superlotação das pessoas sem entusiasmo gerando problemas para a nação espanhola. Essas pessoas sem entusiasmo não sentem a necessidade em construir um projeto comum que identifique com a nação espanhola. A essas pessoas sem entusiasmo Ortega se refere como Homem-massa. Aqui identificamos outro aspecto da moral de Ortega que indica o entusiasmo como um impulso vital e a uma das condições para sair da condição de ser idêntico aos demais homens.

O que isso tem a ver com a obra de Goya? Ortega nos conta que os quadros goyescos são para decoração. Além disso, o pintor não tinha interesse nas touradas por entendê-las como um laser do povo e também não se interessava pela literatura romântica que inspirava os teatros. Nesta passagem, Ortega nos conta a confissão de Goya a um amigo:

Eu não tenho lhes escutado e o mais provável é que nunca os ouça, pois não vou aos lugares onde poderia lhes ouvir, porque se me é posto na cabeça que devo manter uma determinada idéia e guardar uma certa dignidade que o homem deve possuir, com o qual, como podes ver, não estou muito contente (p. 531).

 

Goya então não dialoga com a cultura de seu tempo por achar-se perdido entre ela. Já contava com seus 40 anos e possuía dificuldade em aprender novas técnicas de pintura. Ortega nos conta que por causa dos seus “cartões” Goya consegue entrar no mundo das duquesas e dos “ilustrados”, mas nele permanece como sonâmbulo. Essa situação confronta outro aspecto moral que é a que Ortega entende que a vida é uma construção e não um desejo. Goya ao desejar ter uma vida aristocrata queria apenas circular entre os cultos, mas não tinha um projeto de vida para constituir parte desta classe social. No entanto, nesta época, esses “ilustrados” passaram a viver num racionalismo e num idealismo que mantinha o imperativo categórico kantiano como lei máxima. O imperativo categórico norteava a vida das pessoas através da negatividade. E Goya renuncia a esse desejo de vida por não aceitar o imperativo categórico que supervaloriza a negatividade e passa viver inautenticamente.

Os historiadores espanhóis ao tratarem de Goya esquecem de identificar sua biografia. Isso porque, ao estudar Goya os historiadores consideram a lenda que ele representa e esquecem que Goya foi apenas um homem simples. Estudar Goya, para Ortega, baseando-se apenas na lenda que ele representa consiste apenas em exercitar a melancolia. As biografias de Goya são escritas por pessoas que não sentem a curiosidade científica, então escrevem a vida do pintor como se escreve uma fantasia. Ortega explica que as obras goyescas sem compreender como foi a vida de Goya é o mesmo que fundar uma ciência baseada numa lenda.

Os biógrafos de Goya deixam de lado alguns dados importantes da vida do pintor que lhe causaram grandes dramas e melancolias. Ele teve que sair de sua cidade por ser responsável por três mortes o que levou seu pai a vender as propriedades para ajudar em sua fuga; sua vida não foi original desde os 25 anos porque apenas aprendeu a reproduzir o que se fazia na Itália; Goya dizia ter conhecido alguns palácios que já não existiam mais dentre outras coisas que o marcaram como “um dos homens mais coléricos da Europa” (p.544).

Entender a biografia de Goya nestes aspectos, segundo Ortega, significa compreender que a vida não é uma sucessão de acontecimentos, mas um projeto. Neste projeto, a vida torna-se uma ação que tem como direção o exercício da vocação. Por vocação, Ortega entende que é a responsabilidade moral da nossa interioridade para com as coisas que nos cercam. Nesse sentido, iremos investigar com Ortega se Goya mesmo perdido conseguiu exercitar sua vocação e descobrir se ele foi um ser autêntico.

Primeiramente, se deve elucidar que a subjetividade é o que deve dar significações para o mundo em que se encontra. Goya se sentia um pintor, um artista espanhol. Ele estava livre de julgamentos externos porque realizava a sua vocação. Não há dados suficientes para dizer se Goya desempenhava alguma outra função a não ser o ofício da pintura. Livrando Goya de qualquer julgamento externo, Ortega explica que dividir a vida dele em etapas significa tentar desvelar o seu “eu-vivente”. Ortega nos diz que as obras de Goya podem ter um lado positivo se considerados como uma reclamação. De que ele reclamava? Ortega lança a hipótese de que ele reclamava da valorização da pintura apenas em obras religiosas. Então, Goya foi um pintor de ofício e precisava anunciar que também poderia ser um homem criador. A criação consiste em dar uma significação ao que se produz e, no caso de Goya, não se pode negar que ele criou algo.

Temos aqui um impasse: 1) Goya não tinha projeto e 2) Goya tinha o projeto, de ao menos reclamar e se firmar como pintor. Como solucionar esse impasse? Para Ortega, Goya começou como um acadêmico italiano pintando retratos, em seguida pintou aparições ou fantasmas. O drama começou a fazer parte de sua vida. Em 1800, com o início do impressionismo, o pintor tenta se adaptar, assim como um trabalhador ao seu novo ofício.

Em suma, Goya ainda é um enigma para os historiadores da arte. Se considerarmos sua vida como um drama, deveremos considerá-lo um gênio, mas não podemos considerar sua época como um período dramático. Se o considerarmos como um monstro, levaremos em conta os áureos tempos em que Goya viveu e não percebeu que suas circunstâncias eram felizes, pois felicidade significa a coincidência da vida com as circunstâncias.

Para uma discussão ética, Ortega nos apresenta alguns de seus principais temas. A vida entendida na primeira pessoa percebendo as circunstâncias. Esse equilíbrio, em Ortega, é necessário para qualquer discussão moral. O entusiasmo uniu o povo espanhol nas manifestações culturais, sobretudo nas touradas e no teatro. Quando este entusiasmo faltou, a Espanha se perdeu com a aparição das massas. A realização de uma vocação como projeto de vida é o que a torna uma ação e não um simples desejo. Nesta obra sobre Goya, Ortega objetivou mostrar os problemas éticos que o pintor enfrentou e por isso, suas obras formam uma biografia subjetiva e jamais um retrato do seu tempo. Goya não percebeu que o seu tempo era constituído por alegrias, mas preferiu se fechar em si mesmo, sem se preocupar com suas circunstâncias. Assim, para ele a vida se tornou um caos e um drama.

 

* Resenha apresentada na disciplina Questões éticas no pensamento de Ortega y Gasset, no dia 06/07/2004, na pós-graduação em Filosofia Contemporânea –Ética, da Universidade Federal de São João del-Rei.

** Professor de Filosofia. Pós-Graduando em Filosofia Contemporânea –Ética, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: danilodornas@uol.com.br

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